Nosso Século XXI (1ª Ed.)

O que viveremos
depois da diáspora?

ANTONIO POSSIDONIO SAMPAIO - 14/07/2001

Que refletir sobre o passado — como forma de entender o presente e prognosticar o futuro — é preciso, já ensinaste, Conselheiro Acácio. Mas se nem história confiável possuímos, como falar do passado da região com segurança a fim de entender nosso futuro? O futuro depende de nós, também afirmou o conhecido personagem do escritor Eça de Queirós. Porém, já começamos a desocultar nosso passado através de congressos de história do Grande ABC, realizados de dois em dois anos em cada uma das sete cidades da região. O primeiro ocorreu há 10 anos em Santo André; o último, em Ribeirão Pires em agosto de 2000; o próximo deverá ser realizado em Rio Grande da Serra em 2002, com encerramento do ciclo, cabendo a Santo André reiniciá-lo em 2004.

Até agora, lamentavelmente, só Santo André e São Caetano publicaram os anais desses encontros da intelectualidade da região e de estudiosos da nossa questionada história, que, assim, vem sendo desocultada. Seu idealizador, o professor José de Souza Martins, filho de São Caetano e estudioso da região, afirma na apresentação dos anais do 1º Congresso: “Verdadeiros marcos da história paulista foram, na região, simplesmente destruídos pela ignorância da população regional. A qual, na verdade, deixou-se envenenar por uma suspeitíssima ideologia do progresso, que escondia um tenebroso projeto de desfiguração da paisagem e de destruição ambiental, com graves consequências para as condições de vida de todos. Ridículas histórias oficiais, difundidas com generosidade por uma imprensa sem nenhum senso crítico e por jornalistas sem nenhuma consciência de sua missão pedagógica, transformaram-se em cômicas verdades que os ingênuos repetem sem maior cuidado”.

Colônia de exploração

Acrescenta ainda o conhecido professor de sociologia da Universidade de São Paulo: “O ABC tem sido saqueado pela indústria, que esgota fisicamente o trabalhador, mas também o esgota culturalmente, privando-o da informação histórica que lhe permitiria a consciência das transformações técnicas e sociais e atenuaria a alienação que dele faz também uma vítima cultural da industrialização. O ABC ainda é uma verdadeira colônia de exploração da grande indústria, da qual não tem sido cobrada a reciprocidade a que está moralmente obrigada no plano das atividades culturais”.

Uma década após a realização do 1º Congresso, que teve como tema A Classe Trabalhadora em Seu Lugar, que mudanças substanciais ocorreram na região com relação às denúncias do professor Martins? Eis um filão temático para candidatos a títulos de pós-graduação que as instituições locais de ensino superior vêm cobrando para cumprir exigências legais. E mais do que isso, pois se sabe que essas instituições de ensino, que aqui crescem e se enriquecem, continuam de costas para a comunidade que tanto necessita da contribuição do saber acadêmico, a fim de aprofundar a discussão de inúmeros problemas que não param de nos ameaçar.

Identificado pela cultura do trabalho industrial, o ABC está perdendo sua identidade, Acácio, com a fuga de indústrias da região, que vê no setor de serviços a alternativa possível. A propósito, o professor Paul Singer, em entrevista ao Diário do Grande ABC de 30 de julho de 2000, assegura: “A região está se tornando um centro comercial como nunca foi. Isso é desenvolvimento também. O fato de se transformar é natural, não deveria assustar”. E mais: “Por aqui vão ficar centros tecnológicos, políticos, comerciais, artísticos e universitários”.

Medo de tudo 

Apesar do professor Singer afirmar que a transformação é natural e que não devemos nos assustar, por aqui reina a cultura do medo, Acácio. Medo do novo, medo da violência, medo de perder o emprego, medo do futuro… Medo que não acaba mais!

Porém, Acácio, uns e outros já estão se mexendo em busca de saídas para a diáspora abeceana, consistente não só na fuga das indústrias como também na de dezenas de milhares de trabalhadores provenientes de todas as partes do País, que são obrigados a regressar às suas regiões de origem pois, como sabes, os postos de trabalho são eliminados à medida que as indústrias aumentam a produtividade.

Por que não dispomos de discussões acumuladas sobre a diáspora e suas consequências, como seria de se esperar de uma sociedade civil competente? Eis um assunto da maior importância, que só recentemente começou a preocupar, depois de perceberem que a vaca estava indo pro brejo. Pois aqui, Conselheiro, ainda impera aquela visão herdada de teus patrícios: “Cada um por si e Deus por todos”. Não deixas de ter razão quando observas que nos áureos tempos do enriquecimento fácil, notadamente após a implantação da indústria automobilística na região, não cuidamos de organizar uma sociedade civil competente, cuja participação nas discussões seria de fundamental importância, não é mesmo, Conselheiro?

A educação também sempre deixou a desejar. Até hoje não temos uma universidade pública na região que representa o terceiro maior potencial de consumo do País, ficando atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro.

Enfrentando dos trabalhadores

A cultura política, todavia, ao longo do século XX, teve sua importância graças aos trabalhadores com suas lutas de enfrentamento ao patronato e ao governo. Essas lutas tiveram o melhor momento no final dos anos 70, quando os metalúrgicos empreenderam grandes greves reivindicando melhores salários e condições de trabalho. Repercutiram em todo o País e tornaram o ABC conhecido no mundo inteiro, bem como contribuíram decisivamente para o fim da ditadura militar.

Assim, paradoxalmente, às vítimas da industrialização devemos os mais significativos acontecimentos da nossa história recente. Na esteira das greves de 78, 79 e 80 surgiram o novo sindicalismo, a CUT, maior central sindical brasileira, e o Partido dos Trabalhadores, atualmente organizado em todo o País, iniciativas que confirmaram a capacidade daqueles trabalhadores tão subestimados pela classe dominante.

Dizíamos no começo que, de nós, o futuro depende. Nonada, Conselheiro, como diria um personagem de Guimarães Rosa, nosso grande ficcionista, certamente ainda comemorando aí em cima o centenário de morte do teu criador. Como vivemos na era das incertezas, Hobsbawm já anunciou, não será novidade, em face da vergonhosa exclusão social aqui reinante, o surgimento no começo deste novo milênio de algumas surpresas; pois, como o poeta Drummond já proclamou, os companheiros “estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”. Pois não é possível que um povo, por mais pacífico e cordial que seja, consiga conviver por mais tempo com injustiças sociais que toda gente percebe mas finge ignorar, o que já ensejou o surgimento de uma nova cultura, a do cinismo, consistente em simular e dissimular. Conforme se dizia antigamente: sim sinhor, inhor sim, pois não…

Tempos de Voltaire

Com efeito, Conselheiro, ao contrário de outros tempos, agora até peão politizado dissimula com medo de facão, que na linguagem do chão da fábrica significa ser despedido do emprego. Porém, mais do que a peãozada, a classe média, que sempre preferiu ficar em cima do muro, demonstra estar como nunca apavorada, continuando, todavia, a esperar que alguém em seu nome tome iniciativas para mudar a situação que o Gigante Mercador controla de todas as formas, inclusive através de uma política de comunicação social que, às vezes, nos dá a impressão de que estamos vivendo no melhor dos mundos, conforme Doutor Pangloss, aquele personagem famoso de Voltaire, adorava proclamar.

Acreditas, Acácio, que haja governo capaz de controlar por muito tempo essa multidão de despossuídos constituída por gente sem-terra, sem-emprego, sem-comida, sem-moradia e praticamente sem-cidadania? Há quem afirme, Conselheiro, que as maiores surpresas virão do campo, onde trabalhadores rurais sem-terra, seguindo o exemplo de companheiros da cidade noutros tempos, já descobriram as saídas possíveis que gente acomodada finge ignorar ou desconhece por ignorância. Tanto que antigos ativistas da região, desde meados dos anos 80, se mudaram para o campo em busca de viver com a dignidade que a cada dia mais se afasta da cidade.



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